14.7.08

Cor de mim

A laranja sacudiu-se energicamente lá no alto da laranjeira e disse:

- Ninguém é tão importante como eu! Ninguém se compara comigo!

As folhas bateram umas nas outras, alegremente, que é o modo que elas têm de rir, e exclamaram:

- Bazófias, minha filha!

A laranja fez de conta que não era nada com ela, até porque não sabia o que queria dizer «bazófias», e, vaidosamente, voltou a dizer:

- Ninguém é tão importante como eu!

As folhas já estavam ligeiramente fartas daquela conversa, que se repetia todos os dias, e perguntaram:

- Mas porquê? Não acabas, como tods, em cima de um prato ou espremidinha para dentro de um copo?

A laranja deitou-lhes um olhar verdadeiramente enjoado:

- Francamente, vocês não percebem nada disto!

Depois aclarou a voz e continuou:

- Vocês são verdes. O meu primo limão é amarelo, a minha prima banana também é amarela, às vezes verde. O meu primo morango é vermelho. A minha prima uva é azul. A minha prima pêra é verde, amarelada, quando muito. Todos os meus primos e primas têm cores que são cores de muita gente. Mas eu... Eu sou cor de laranja!

- E isso que tem? - perguntaram as folhas, afinadamente em coro.

- Nunca vi ninguém que pensasse tão lentamente... - refilou a laranja.

Aclarou novamente a voz:

- Eu... eu sou... eu sou cor de laranja! Ou seja, eu sou cor de mim! Cor de mim própria!

Nessa altura, uma das folhas que raciocinava mais velozmente lembrou-se de dizer, lá do alto do seu ramo:

- Mas a tua prima rosa também é... cor-de-rosa! Cor dela própria!

A laranja ficou enraivecidamente cor de laranja e gritou:

- Cala-te imediatamente! Não me fales dessa toleirona, que estamos de relações cortadas há anos!

Então a folha encolheu-se, mandou passear a laranja mais as suas manias de superioridade, e murmurou lentamente:

- Mas quem me manda a mim meter em questões de família...


Retirado de
«Livro com Cheiro a Caramelo»
de Alice Vieira
Texto Ed.

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