Um dia, Shakiamouni vagueava no paraíso, solitário e sereno, por entre a beleza das flores à beira de um lago. A brisa perfumada produzia na água uma ligeira ondulação. Era uma vulgar manhã de Primavera, doce e perfeita. Ora, enquanto este deus caminhava tranquilamente, com passos lentos, pela erva tépida da margem, o seu olhar deixou-se cativar pelo esplendor do sol sobre as ondas transparentes. Parou e desejou ver, através das águas claras, o que se passava nessa manhã no subsolo do mundo, onde era o inferno, porque sob esse lago do paraíso, infinitamente longínquos, mas perfeitamente visíveis aos olhos divinos de Shakiamouni, se encontravam os pântanos de sangue e fogo onde se movia a multidão espessa dos danados.
Entre essa multidão avistou um homem que se debatia mais furiosamente do que os outros. Tentava içar-se, estendia as mãos para os céus vazios, escalava as chamas para gritar a sua revolta entre os fumos de enxofre. Shakiamouni reconheceu-o: era Kandata, um bandido de grande força e de voz muito forte, que ocupara os dias a pilhar, incendiar e assassinar desavergonhadamente. Teria tido alguma vez um pequeno gesto de bondade, ainda que ínfimo?
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Shakiamouni saboreou essa lembrança com uma imperceptível, mas infinita, felicidade. «Talvez seja possível redimir Kandata», disse para consigo. Perto de si uma aranha do paraíso tecia a teia entre duas flores de lótus. Pegou delicadamente no fio com os seus dedos de mármore e, através das águas do lago, desenrolou-o até aos pântanos do inferno.
No meio daqueles malditos esgotados pelas torturas, cujos rostos pálidos e queixosos derivavam à sua volta, Kandata, único rebelde, batia-se contra as poças de sangue, perseguindo os fogos loucos como nuvens de insectos, quando viu de repente luzir um fio de aranha na escuridão do céu. Ergueu a cabeça e apercebeu-se de que descia em linha recta de um buraco brilhante como uma estrela no mais alto do céu. Nesse instante o coração saltitou-lhe no peito e ocorreu-lhe ser possível evadir-se dos miasmas em que estava a apodrecer.
Avidamente, alcançou o fio e começou a subir com todas as forças. Como bom ladrão que era, sabia escalar com agilidade às escuras, mas a estrela estava distante e o paraíso era ainda para além dela. Tentou elevar-se, mas perdeu as forças e, quando percebeu que não poderia continuar, decidiu repousar por um instante.
Parou, pois, de se içar e olhou para baixo. Não se extenuara em vão: já quase não distinguia os pântanos infernais, perdidos numa bruma enevoada, e no ar que respirava já não dominava o cheiro opressivo que cobria os lugares donde vinha. «Mais um esforço e estou salvo», disse para si mesmo, com uma alegria voraz. «A mim, o paraíso, a mim!» Mas, antes de retomar a subida, baixou de novo a cabeça para tomar coragem e olhar pela última vez o inferno.
Viu então, no fundo dos fundos, semelhantes a formigas nos clarões das chamas, cachos de danados, loucos de esperança, que se agarravam ao extremo da fina corda que escalava e subiam a seguir a ele. «Que desgraça!» pensou. «Será que não vêem que este fio é frágil? Só por milagre é que me aguenta! Como poderá resistir a este exército de malandrins? Vai partir-se e cairemos todos novamente no inferno, eu e estes malditos invejosos!»
― Parem! ― gritou, com todas as forças, tremendo de medo e de raiva. ― Quem lhes deu licença para subirem? Este fio é meu, só meu, danados, larguem-no!
Mal tinha acabado de proferir estas palavras, o fio de aranha quebrou-se ao simples sopro da sua voz. De uma só vez.
Na borda do lago do paraíso, Shakiamouni viu Kandata cair como um ponto luminoso e rodopiar até se enterrar nas distantes brumas infernais. Agora estava perdido para sempre. Nada poderia salvá-lo. «Como os homens são estranhos e complicados», pensou o deus, subitamente melancólico. «Por que razão quis o bandido salvar-se sozinho?»
Shakiamouni retomou o passeio calmo à beira da água, na brisa indiferente e por entre flores de perfume perfeito. Era meio-dia no paraíso e o sol, no céu, ainda não tinha encontrado a mais ligeira nuvem.
Henri Gougaud
A Árvore dos Tesouros
Lisboa, Gradiva, 1988
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